Em 2015, com o lançamento de seu quarto álbum, Cherry Bomb, Tyler, the Creator lançou uma revista de edição limitada como parte de seu projeto Golf Media, com entrevistas com pessoas como Seth Rogen, além de materiais relacionados ao álbum, como um escaneamento do caderno Moleskine, no qual ele anotava suas ideias. Ele dedicou algumas páginas do livro para destacar os discos que mais o influenciaram: Hell Hath No Fury, do Clipse; In My Mind, de Pharrell; e, de forma significativa, Voodoo, obra-prima de D’Angelo lançada em 2000. Em seu texto sobre o saudoso astro do R&B, Tyler recordou ter ganhado 30 dólares da avó em seu nono aniversário e usado o dinheiro para comprar o CD. “Meus vídeos favoritos na BET eram ‘Get Up’, de Amel Larrieux, e ‘Left Right’, de D’Angelo”, ele escreveu. “Comprei os dois álbuns, e nunca me arrependerei disso.”
Na semana passada, após a trágica morte de D’Angelo, Tyler foi ao Instagram prestar tributo ao artista que tanto influenciou sua música — mas as coisas rapidamente saíram dos trilhos.
Após um post sincero, no qual repetiu muito do que havia escrito dez anos antes, os comentários começaram a aparecer em massa — alguns pedindo por novas músicas, outros desdenhando a homenagem ou até questionando quem era D’Angelo. Como costuma fazer, Tyler foi ao Twitter e criticou um segmento de sua base de fãs que ele chamou pejorativamente de “Sun Seekers” — isto é, fãs brancos que desconheciam o legado de D’Angelo. Um post do agregador de notícias de hip hop Kurcco destacou que o próprio Tyler curtiu um tuíte que dizia: “O cara tem colaborações com Charlie Wilson, Erykah Badu, DJ Drama etc., e eles ainda se recusam a se engajar com a arte negra de forma significativa. Muito canibalístico.”
O debate que surgiu sugeria que Tyler, the Creator, com o trabalho inicial e altamente ofensivo do Odd Future, teria cultivado uma base de fãs de incels brancos hostis à música negra. O refrão era que ele deveria esperar essas reações à sua homenagem a D’Angelo — e que só tinha a si para culpar. As “provas” apresentadas eram tuítes e prints de sua carreira inicial, nos quais Tyler fazia de tudo: desde criticar os protestos por George Floyd até realizar “provocações” como vestir um manto da Klan e vender produtos com imagens inspiradas na figura racista Sambo. Mais do que provocações de um artista expressando uma forma (equivocada) de angústia pós-moderna racializada, esses fatos passaram a ser usados como evidência de que Tyler odiava a si e à sua negritude. É o tipo de conversa feita sob medida para a internet.
A ideia de que Tyler cultivou uma audiência de incels brancos ignora o fato de que Odd Future já tinha muitos fãs negros desde o começo. Era um grupo de adolescentes negros fazendo música ousada e experimental que, na verdade, conquistou uma grande quantidade de ouvintes jovens e negros. Isso sem falar na evolução da base de fãs de Tyler nos últimos 15 anos. Mesmo levando esse argumento ao pé da letra, ele não explica o público atual do artista — que, numericamente, já superou aquele dos primeiros anos. Além disso, é uma leitura revisionista. Nas mesmas redes em que Tyler publicava comentários ofensivos no início dos anos 2010, ele também expressava admiração por nomes como Erykah Badu e D’Angelo. O ponto, naquela época, era que Tyler era cheio de contradições. A raiva expressa em sua música não era diferente da de Eminem, cujas frustrações internas com a masculinidade alimentaram as obras mais brilhantes e, ao mesmo tempo, violentas, misóginas e homofóbicas de sua carreira. Nunca era para levar aquilo ao pé da letra.
A falta de lógica desse argumento se estende à conclusão: a ideia de que a última década da obra de Tyler — com seu abraço aberto tanto a formas clássicas da música negra quanto a um rap mais tradicionalista (vide “That Guy”, sua vibrante releitura de “Hey Now”, de Kendrick Lamar) — seria apenas uma tentativa de atrair novos fãs negros para continuar relevante. Para acreditar nisso, seria preciso ignorar tudo o que aconteceu de fato na trajetória de Tyler e do Odd Future. Seria necessário confiar em uma releitura curada da história, e não em experiências vividas — exatamente o terreno em que a internet habita: o espaço entre o conteúdo e o contexto.
O amor de Tyler pelo hip hop como forma de arte, no sentido mais puro da palavra, é quase irritantemente bem documentado. Foi apenas no ano passado que ele se desentendeu com o “rapper branco do mês” da internet, Ian, chamando seu estilo e postura de ofensivos em uma entrevista com Maverick Carter. “Tem esse garoto branco, um cara caucasiano comum, que fica imitando o Future e o Gucci Mane — o rap — e as pessoas dizem: ‘Yo, isso é demais!’… mas, mano, é paródia. Ele nem está tentando melhorar o rap”, disse.
Tyler levou Roy Ayers para o festival Camp Flog Gnaw em 2017 e, em março passado, após a morte de Ayers, compartilhou uma homenagem comovente ao pioneiro do neo-soul, chamando-o de “a base do meu som”. Tudo isso para dizer que, se existe um tipo médio de fã de Tyler, the Creator, ele provavelmente é mais um entusiasta obcecado por artistas como D’Angelo do que um garoto branco que simplesmente odeia música negra.
O que claramente frustrou Tyler foi o fato de que os comentaristas estavam mais focados em cobrar novas músicas do que no que ele realmente estava postando. Esse é, sem dúvida, o problema mais comum enfrentado por celebridades na era digital — fãs tão obcecados que perdem completamente o contexto. Também não ajuda o fato de que Tyler, como praticamente todo rapper popular das últimas duas décadas, tem uma grande audiência branca — um fenômeno que antecede sua geração em pelo menos vinte anos. Ainda assim, é um exagero chamá-los de “incels”, e não está claro o que esse rótulo — centrado em homens solitários e misoginia — significaria nesse contexto. Além disso, os chamados “incels brancos” de hoje — alimentados por um fluxo constante de streamers polêmicos como Adin Ross e N3ON — certamente não estão ouvindo Tyler, the Creator, o artista que lançou um álbum chamado Flower Boy.
E essa nem é a primeira vez, no último ano, que o material antigo de Tyler voltou à tona na internet, gerando o mesmo ciclo familiar de debates online — um verdadeiro ouroboros de discursos envoltos na linguagem da “responsabilização” e de uma política bem-intencionada, mas que, na prática, serve apenas para alimentar a máquina do engajamento digital. No ano passado, depois que Tyler ultrapassou brevemente Taylor Swift no ranking “Top Artists — Global” do Spotify, os swifties começaram a compartilhar capturas de tela com letras antigas dele, reacendendo uma discussão que durou dias sobre sua misoginia passada. Tyler respondeu à polêmica do seu próprio jeito: durante um show em Boston, declarou, “Deixei as Swifties todas bravas com o racismo delas… vadia, vai ouvir ‘Tron Cat’. Eu não dou a mínima, porra. Eles vão acabar trazendo o velho eu de volta.”
Nessa nova controvérsia, porém, o veneno é mais forte. A relação de Tyler com sua negritude — desde as acusações de que ele incentivava fãs brancos a dizer a palavra com N (a citação real foi estúpida, mas muito menos sombria), até comentários depreciativos sobre mulheres negras — oferece, de fato, terreno mais fértil para críticas. Dito isso, criadores de conteúdo no TikTok começaram a compartilhar relatos sobre o suposto “antinegritude” de Tyler, que, como de costume, acabam se entrelaçando a histórias pessoais.
Com alguma justiça, muitos comentaristas online reconhecem que Tyler evoluiu, mas afirmam que, por não ter se desculpado publicamente e de forma explícita por seus comportamentos passados, ele não teria pagado o suficiente por suas ações. Essa mais recente “crise” tem sido amplamente descrita como o momento em que Tyler está “levando suas chibatadas”. E é justamente nessa linguagem que se revela o que realmente está acontecendo. Não há desculpa para as postagens e comentários pelos quais Tyler ficou conhecido no início da carreira — mas a internet é movida por sede de sangue, não por justiça. A ponto de uma homenagem a D’Angelo ter se transformado em quase uma semana de discussões sobre tuítes de mais de dez anos atrás. Enquanto isso, Chris Brown está em turnê mundial por estádios.
O tipo de debate cada vez mais comum nos espaços digitais — onde reduzimos indivíduos a dados digeríveis — é inútil para conversas realmente produtivas sobre antinegritude, arte ou misoginia. É tudo conteúdo feito para cutucar e explorar as questões complexas que compõem nossa identidade, gerando emoções intensas que alimentam infinitas publicações. Quanto mais unidimensional você conseguir retratar alguém, melhor. Tyler, the Creator pode até ter surgido impulsionado por um otimismo sobre a internet como ferramenta para dar voz aos incompreendidos, mas ela se transformou em uma força que destrói justamente a nuance e o contexto que nos tornam humanos.
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O post Tyler, the Creator está preso em um vórtice de debates online apareceu primeiro em Rolling Stone Brasil.