Falar de suas vitórias, dos rolês, do futebol e de temas mais populares foi um caminho que deu certo na carreira do rapper paulistano Fleezus, que se destacou tanto na trajetória solo quanto em colaborações — como em “Que Tal”, de Marina Sena, e no Brime!, projeto criado ao lado de CESRV e Febem. Mas ele sentia que faltava abordar outros assuntos e temas que vão além da camisa de time, da correntinha de ouro e do boné de lado.
O artista percebeu essa lacuna durante a produção de seu segundo disco de estúdio, Off Mode (2023), um trabalho mais “pra frente”, com timbres alegres e vibrantes. Foi então que decidiu tirar essa armadura criativa e pessoal para entregar uma obra mais intimista, com o intuito de estabelecer um diálogo mais próximo com o público, em um exercício de autoconhecimento que vai dos êxitos às falhas e às questões mais humanas.
O resultado é Crônicas, terceiro álbum de Fleezus, lançado nas plataformas digitais nesta quarta, 8. O disco funciona como um complemento de Off Mode, aprofundando e expandindo os temas apresentados no trabalho anterior. São, portanto, ideias que se completam.
“Equilibrar essa balança foi muito importante, porque, da mesma forma que Off Mode tem sua particularidade, Crônicas também tem”, afirmou o cantor à Rolling Stone Brasil. “Só que Crônicas é um disco mais denso.”
“Crônicas vem para tocar mais as pessoas no íntimo, para buscarem o autoconhecimento. Por mais que eu esteja falando de mim em várias faixas, eu sei que, quando as pessoas escutam o álbum, sentem que é com elas que estou falando também.”
Complementares, sim, mas completamente diferentes. Durante o processo criativo do novo disco, Fleezus acreditou na ideia que tinha e teve coragem de investir seu tempo em uma nova narrativa: “Quando você está pronto, dá esse passo e automaticamente tira aquela armadura e fala: ‘Agora vou entregar pra vocês o que realmente eu quero’.”
Para ele, na arte, existe uma certa armadura que muitos rappers colocam e que, muitas vezes, os mantém em uma zona de conforto. Ou seja, é mais fácil abordar um tema sem ter profundidade sobre ele. Com Crônicas, Fleezus propõe o oposto: um papo reto. “‘Vem um pouquinho mais comigo pra gente entender o que eu tô sentindo, vamos ter essa troca juntos.’ Crônicas é sobre isso”, explicou.
Com influências do grime (a base da arte de Fleezus), do samba, do rap, do funk e até do filme Os Bons Companheiros (1990), o rapper abre sua cabeça para o público e mostra as ideias que realmente quer transmitir.
“O Fleezus pelo Fleezus. Em Crônicas, decidi dar esse passo adiante pra que os fãs pudessem ter um contato mais próximo comigo nas músicas. Acho muito legal ter egotrip no rolê, abordar certos temas, mas também é importante mostrar esse outro lado. Sem palavras difíceis, porque isso às vezes afasta as pessoas.”
Com uma linguagem mais simples e direta, Fleezus traz, de fato, crônicas da própria mente e de como enxerga o mundo, a vida, a rua. “Porque a rua sabe como funciona o procedimento. Se a gente conseguir levar essa ideia pra essa galera da rua, vai ser daora. Vai ser legal.”
Crônicas é, no fim das contas, a visão do rapper sobre a vida, com todas as suas dificuldades, hipocrisias, vitórias, lamentos e amores. “Seu ‘cartão de visitas’ às vezes é o tênis da Nike, o 12 molas — e muitas vezes a galera não quer te ouvir falar disso, mas quer saber como você tá, como funciona sua mente e como você observa o mundo.”
“Um dos meus objetivos é dar mais amplitude pro meu público, porque minha base já me conhece. Também tô num processo de deixar um pouco — sem esquecer minhas raízes, pelo amor de Deus — a camisa de time e dizer: ‘Galera, vamos pra esse caminho aqui?’ Dar uma direcionada pra um olhar mais de dentro. É legal falar de futebol, uma linguagem popular nossa, e eu já falo disso em outros lugares. Agora, o Fleezus da carreira solo tenta entrar mais a fundo nas situações, nas questões íntimas da mente, do corpo, enfim.”
Crônicas foi um exercício de mostrar esse outro lado para a galera ou de autoentendimento?
É um exercício de autoentendimento. Tanto que, ao escrever, eu termino, paro e penso sobre o que escrevi. Eu olho a letra e falo: “beleza, pera aí, eu queria falar isso, mas não consegui passar da forma que eu queria”. Aí apago e escrevo de novo. É como se fosse uma terapia comigo mesmo.
Daí veio o nome Crônicas, porque quero trazer crônicas da minha mente — da forma como enxergo o mundo, a vida, a rua. Porque a rua sabe como funciona o procedimento. Se a gente conseguir levar essa ideia mais crônica pra essa galera da rua, vai ser daora. Vai ser legal.
Por que “Pace de Malandro” como single foco?
Porque “Pace de Malandro” é uma música que eu quis fazer pros meus amigos — pra galera do City Hunters, coletivo de corrida do qual faço parte. Quis fazer pra eles como forma de agradecimento, por me ajudarem nesse processo de mudança de hábitos, que não é fácil.
Fiz também pra galera do corre do dia a dia: o cara que levanta cinco da manhã pra trabalhar, a pessoa que tá na labuta diária. Quis direcionar pra esses dois corres — o de cuidar do corpo e da mente através da corrida, e o corre geral da vida.
Na época, eu tava muito envolvido com a corrida, engajado com essa causa, até como uma forma de democratizar, porque sabemos que o ambiente da corrida é muito elitista. E a gente sempre brigou pra tornar isso mais popular, mais próximo do povo, da base mesmo.
Quando fiz “Pace de Malandro”, eu estava dentro desse momento, desse rolê. Não que eu tenha saído, continuo, mas aquele foi um momento crucial. Tanto que eu falo que as ideias estão sempre no ar, permeando — e quem tiver o feeling de sacar o momento certo pra puxar a ideia e trazer pra si, essa é a chave.
Eu não podia perder o timing da parada, então tudo casou pra que “Pace de Malandro” fosse a introdução do disco, porque o momento pedia essa música. Eu sentia que, quando a gente ia correr e ligava a JBL, rolavam vários sons, e isso é massa. Mas quando toca um som que é pra sua galera, muda tudo.
Aí tudo passa a fazer sentido praquele mano e aquela mina que acordam às cinco, botam o fone e vão pro trampo. Eu sentia que precisava fazer algo sobre corrida e autocuidado mental e físico — não só sobre as ideias.
Você corre com frequência? Ou quando dá?
Agora, quando dá. Não vou ser hipócrita e dizer que sou atleta — longe disso. Quando dá, tô com eles, que sabem da minha correria com os trampos, mas sempre que posso tô junto e somando com a galera da corrida, que eu acho muito importante.
O mundo da corrida tem um papel social, e a gente tenta ao máximo levar essa ideia pra base — pra galera que mora lá no fundão da Zona Sul. A mensagem é: “mano, não se preocupa com o tênis que você tem, só vem, soma com a gente, corre!”.
Por mais que a corrida esteja em alta, com vários coletivos surgindo, é uma moda do bem. É sobre cuidar da saúde, da mente. No fim do dia, é sobre isso.
E você também não precisa daquele tênis de R$ 3 mil, que dobra.
Nossa proposta não é essa. A gente deixa isso pros atletas, pra galera que quer se destacar mais. Tipo: tem gente que quer fazer maratona, e a gente apoia, dá o suporte que consegue pra essa pessoa alcançar o objetivo.
Mas a nossa proposta é outra: trazer pessoas da base pra cuidar do corpo, correr, fazer uma atividade física e estar com a gente. Depois tem uma cervejinha, a resenha. É sobre socializar.
Vem muita gente legal, de vários lugares de São Paulo, pra somar. É muito importante ver a galera fazendo amizade por causa do City. Não é sobre o tênis de três mil — porque eu tô nem aí pra isso. Quero saber se você tá afim de correr com a gente.
Em questão de produção, quem você trouxe para este disco? Ou centralizou em você?
O disco tem produções do Cesinha [apelido do produtor CESRV]; do Paulinho [Paulo Vitor], do Deekapz; e do El Lif, lá do Rio. Eu quis trazer meus amigos. Durante o processo de criação dos meus discos, costumo chamar pessoas próximas a mim — gente que faz parte do meu rolê, com quem eu saio pra tomar uma cerveja, jantar ou dar um rolê. Raras são as vezes em que você vai ver uma pessoa “X” nos meus trabalhos.
São pessoas que fizeram parte da minha vida em algum momento, que somaram comigo, e esses três produtores fazem parte disso. O Cesinha já é de casa, nenhuma novidade. Mas o Paulinho e o El Lif estão muito próximos de mim nesse momento — a gente vive os mesmos rolês, cria junto, e quis chamá-los porque acredito e gosto muito do trabalho dos três. Cada um tem o seu jeito de fazer e analisar as coisas, e, quando consegui juntar todos, cada um trazendo seu toque e suas ideias, foi uma experiência muito legal.
Falando mais especificamente sobre o Cesinha, com quem você colabora há muito tempo, inclusive no Brime!. Como vocês também conseguem se renovar para não repetir o mesmo?
Se eu te falar que as ideias surgem das formas mais bizarras possíveis… A gente tá sempre na rua, trocando ideia, mostrando som um pro outro, e dali as coisas começam a nascer. Minha cabeça funciona assim: quando eu tenho uma ideia e um conceito do que quero entregar, na minha mente o disco já está pronto — eu só preciso destrinchar. Então, no fim, fazer música é a parte mais fácil, porque parte da ideia.
Nós somos uma nascente. Uma hora ou outra, a nascente pode baixar, a água pode baixar. Somos seres humanos, e é natural ter momentos de bloqueio criativo. Já aconteceu comigo, já aconteceu com amigos também. Mas quando você tem uma base de amigos próxima que te fala “ô, mano, vamos! Essa ideia é massa, vamos fazer tal coisa”, isso ajuda muito.
Estar na rua, ver gente, conhecer pessoas e coisas novas também alimenta a criatividade. Já tive dificuldades criativas ao longo da carreira, e também já vivi fases, como agora, de muita inspiração. Terminei o Crônicas, acelerei o Cesinha e já estamos no processo do outro disco — porque é sobre o momento, tá ligado? E vai ter hora que eu vou falar: “Putz, mano, não tá saindo nada”.
Artistas são seres humanos como qualquer outra pessoa. Vai ter hora que a gente olha e fala: “Tô castelando aqui, nada tá fluindo”. É questão de resiliência também. Abraça o momento, tenta entender, e vai viver outras coisas: ver filmes que você não costuma ver, ler livros que você não costuma ler… sair um pouco daquela atmosfera muda a direção da sua energia.
E o nome faz muito jus a tudo o que você canta no disco, né? Já vamos entrar em maiores detalhes em algumas das músicas em breve, mas quais temas e assuntos você quis trazer aqui?
Insegurança, amor, cuidado e a rua — mas com mais profundidade. Eu sentia que ficar na superfície era confortável, mas ir lá no fundo do oceano te permite passar a mensagem com mais clareza. Quando eu quis fazer o Crônicas, a ideia era realmente falar de forma mais direta sobre o cuidado com o corpo e a mente, sobre a forma como você trata as pessoas, como enxerga o mundo. É uma ótica de como eu vejo a vida.
Quis falar de amor de várias formas possíveis, mostrar que eu também sou humano, erro, tenho falhas — e que é preciso coragem pra colocar isso numa letra. Tem que tirar a armadura, como eu disse lá no início. Crônicas é sobre tirar a armadura e dizer: “Agora vocês estão vendo o Fleezus aqui, galera. Vocês vêm comigo? Eu vou com vocês, se vocês forem comigo.”

Você conta com diversas parcerias em Crônicas: LPT Zlatan, PLK, Criolo, Febem, VND, SD9, BradockDan, Hot e Pastor. Como foi essa troca com outros artistas?
Cara, foi uma troca muito massa. Tem uma história, inclusive, sobre a produção de uma música com o Criolo que foi bem engraçada. O disco já estava em processo de produção, mas ainda meio cru — faltava um refrão. Eu até conseguia canetar, mas travava justamente nessa parte. É aquilo que falei: artista também trava, dá um flip na mente.
O Cesinha falava: “Mano, respira, vai tomar um ar, daqui a pouco você volta e pensa no refrão”. Aí liguei pro Criolo e falei: “Ô, mano, onde você tá? Não quer vir aqui escutar umas músicas do disco que eu tô fazendo?”. Ele respondeu: “Tô almoçando, me dá meia hora pra ver se consigo chegar”.
Meia hora depois, ele apareceu lá no estúdio do Cesinha. A gente foi buscar ele, comecei a mostrar umas músicas, e ele: “Pera aí!”. Pausava a faixa, já colocava o celular pra gravar, o Cesinha soltava o beat e ele ia gravando. Nessa brincadeira, a gente fez três músicas — uma intro (que era pra ser a intro do meu disco, mas acabou ficando mais a cara dele) e mais duas faixas. E tem uma em que o nome dele está escondido, mas ele também faz parte.
Foi um dia muito especial. A gente tava viajando no estúdio — e “viajando” de som mesmo. Compramos várias cápsulas de café, e quando vimos, já tinham acabado todas. Ficamos até altas horas falando de música. Eu sou muito fã do Criolo, então poder ter essa troca em estúdio foi muito marcante pra mim.
O mais louco foi ver a simplicidade dele e a forma como ele enxerga as coisas. Ele mudou completamente a cara de uma música. Me disse: “As pessoas não querem ver os ídolos delas pra baixo; dá pra mudar o sentido dessa narrativa que você tá tentando trazer”.
É um disco em que falo muito sobre minhas inseguranças em algumas questões da vida — que eu vou deixar pra galera escutar e entender.
Com o VND também foi muito massa. A ideia era construir uma música sobre rivalidade — sobre serem rivais — e o Cesinha ajudou muito a moldar essa crônica da rivalidade: cada um em um ambiente, vivendo uma coisa diferente. Um tá na neurose, num quarto, falando um monte; o outro tá na rua, passando por uma situação cabulosa.
Esses dois são rivais dentro das suas realidades, e no fim rola uma tragédia dentro dessa rivalidade. Uma narrativa muito foda. O VND entrou nessa viagem comigo — parecia que nós dois éramos o Martin Scorsese criando uma história juntos.
A primeira faixa mostra uma transmissão da Rádio Libertadora, que já faz a transição para um discurso do Galo de Luta em “Quem Vai Rezar Por Vocês”, sem contar seus posicionamentos anteriores pró-Palestina. Para você, qual a importância de trazer esse discurso político para sua arte, ainda mais hoje que muitos artistas preferem se abster ou ficar em cima do muro para não atrapalhar contatos, perder seguidores, etc. Você até fala um pouco disso em “Nois é Nois”.
Eu acho que é dever do rapper se posicionar. Se você tá em cima do muro, você está no lugar errado. Você é o único responsável pela sua realidade. E se você não quer que as pessoas saibam o seu posicionamento, amigo… a gente já sabe de que lado você está, quem você quer agradar não se posicionando. Não tem nem muito o que falar sobre isso. Eu só tento fazer a minha parte.
A gente aborda temas políticos dentro do disco, como você falou. Da minha parte ainda, sendo bem criterioso, o próximo virá quente nessa questão de posicionamento. É aquilo que a gente conversou no Off Mode, uma parada que complementa Crônicas. A gente faz parte de um movimento que é contra tudo isso que tá acontecendo no nosso país. Se a gente não fizer nada, quem vai fazer? A gente vê Jones Manoel, Renato, Galo de Luta… pessoas que tão conseguindo fazer uma movimentação muito foda no país. FBC faz um trabalho excepcional. Vamos porque precisa. E ir pra rua expor suas ideias sem medo.
É igual à situação de Gaza. Como eu vou subir no palco e não dar uma palavra sobre? Olha o genocídio em Gaza. Como eu vou subir no palco e não falar nem um pouco sobre e fingir que tá tudo bem? Foda-se se você aí do outro lado, que tá me ouvindo agora, não quiser me contratar mais também — eu não tô nem aí pra vocês. Não é pra você o recado. Eu vou ser pró-Palestina até o fim. Eu não posso ser ignorante ao ponto de achar que é uma guerra — o que não é. É um genocídio.
Acho que uma das minhas faixas favoritas é “Rivais”, com VND, na qual você traz todo um discurso de tentar encontrar a luz, falando do peso que você carrega também. Como foi fazer esse exercício?
É a parte do rival que tá no quarto dele castelando, expondo as inseguranças dele. O cara não consegue nem enxergar a janela do quarto, de tão neurótico que tá, pensando em várias questões da vida. Autocobrança e ansiedade demais.
O outro tá em outra situação, na rua. E os dois, ao mesmo tempo que são rivais, partem do princípio de que a nossa mente é o gatilho de muita coisa. Os dois estão com a mente zoada. Não é sobre o rival. É sobre a minha mente e o que passa dentro dela, as coisas que passam comigo e me dão ansiedade em alguma questão. Conseguir passar isso em “Rivais” é a parte mais importante. Tem muita gente que passa pela mesma coisa, que tá no quarto ansioso. E acontece.
Tudo é sobre o sentimento do ser humano e mostrar que o rapper não é intocável: tem inseguranças e passa por problemas — e tudo bem.
E você colocou trechos de Os Bons Companheiros (1990), né? Como os filmes te influenciam artisticamente na música?
Boa pergunta. Os Bons Companheiros é um filme que todo rapper deveria assistir. No que diz respeito a comportamento, é um filme muito massa pra você entender algumas coisas. A parte do trecho que eu coloco é pra mostrar, no final, o que acontece naquela história. Não é aquela jornada de herói, mas uma jornada em que o cara saiu do quarto dele e, naquele curto espaço de tempo em que decidiu ir pra rua, ele encontra o rival — e aí fim de história.
Nem sempre as histórias precisam ter final feliz. Filmes e séries que me surpreendem nesse ponto, às vezes no começo eu não entendo, mas depois eu gosto. Já aconteceu algumas vezes.
O próprio Sopranos, você não sabe o que acontece no final, e isso eu acho muito foda, porque aí fica a interpretação. Eu acho legal como as pessoas enxergam a música também, porque é igual ler um livro: cada um vai interpretar e entender de um jeito, principalmente se tratando de uma crônica, que te dá esse espaço pra ter a sua própria leitura.
E eu também senti que você faz outro desabafo em “Puro”, mas desta vez de dentro pra fora, com a interpolação de “Oitavo Anjo”, do Dexter, e relembra também do que você, Febem e Cesinha fizeram com Brime!. O que te motivou para esta letra?
Nós, como seres humanos, temos memória fraca. Quando eu tenho espaço de voz psra contar um pouco da minha trajetória no grime, minha base formadora, eu vou, de alguma forma, tentar encaixar isso nos meus trabalhos. Não é nem carteirada — são fatos relatados na música. A gente tava lá quando tudo era mato. Antes eu tinha receio de chegar e expor isso em público. Mas a gente tem que falar, porque o povo esquece.
E quem tava lá? Quem capinou o mato para vocês poderem caminhar gostosinho? Eu, SD9, Febem, Vandal e por aí vai. Tem vários outros caras. Eu só tô contando minha história. Pode achar prepotência — é história, fato, número, dado. Pode pesquisar onde vocês quiserem. Tá tudo registrado, e eu só tô colocando na caneta.
Aproveitando este tema do Brime!, vocês celebraram os cinco anos do disco em 2025, quebraram tudo no Baile do Brime na Audio e a Rolling Stone Brasil falou com vocês antes deste show. Mas agora, alguns meses depois, como foi esse momento de celebração para você?
Foi muito importante e gratificante também. Manter uma história durante cinco anos, com três mentes pensantes e diferentes, que muitas vezes conflitam, é algo pra celebrar. Foi correr pro abraço, curtir. Uma caminhada árdua pra chegar até aqui. Foi treta porque teve pandemia — já contei isso em outras oportunidades. Quando eu pisei no palco, olhava pra trás e via o Cesinha, olhava pro lado e via o Febem, olhava pra frente e via vocês, eu falava: “Caralho, a gente conseguiu!”.
A importância tá mais no fã que me para na rua e agradece pelo Brime! do que nos anos. É muito massa construir um rolê e uma atmosfera — que inclusive foi copiada, mas é isso mesmo. Estamos sempre trazendo novidade. Se a gente tivesse a grana que esses boys têm, já teríamos feito coisas absurdas com o Brime!. A gente só não faz por questão financeira. É uma caminhada muito foda, me orgulho muito de fazer parte disso.
O Brime! é uma celebração constante: 90 minutos de festa, igual à torcida do Corinthians, sem parar quieto. Temos ideias para trazer outra atmosfera e outro olhar, mas isso é papo para depois.
Esses cinco anos foram maravilhosos, e espero que venham mais cinco pela frente, se Deus quiser.
Para mim é um movimento cultural muito louco.
É isso. E essa fidelidade e identificação que o público tem com o nosso rolê é muito massa. Você vê a galera na rua, vestida com a camiseta… eu fico em choque. Quando eu passo na rua e tem alguém com a camiseta do Brime!, eu acho uma doideira.
A gente não consegue dimensionar a responsabilidade que tem quando sobe no palco.
É meio que o Romarinho dando a cavadinha na La Bombonera em final de Libertadores.
Perfeito, essa análise foi cirúrgica.

Eu também queria falar de “2 Glock”, com SD9, que tem uma influência maior de funk, assim como “CARDS”. O que você acha de tão interessante em fundir o rap ao funk?
É voltar pra superfície e se divertir. É uma extensão do que eu penso quando quero fazer algo com o Brime! e me divertir. Trago os moleques pra perto e falo: “Mano, vamos tirar onda aqui nessa faixa?”. E ninguém melhor do que o SD pra fazer isso comigo. Mano, eu vou contar a história da produção dessa música.
Era dia de jogo do Vasco e a gente falou: “Depois do jogo a gente grava, tá de boa”. E aí, já sabe — começamos a beber cerveja. Chegou uma hora que terminamos de escrever a música, mas estávamos tão confusos que não conseguíamos contar as barras. Foi muito engraçado.
O SD tem uma aura espetacular, é um moleque que transforma o ambiente onde vai. Ele é muito engraçado. Eu falei: “Eu e você temos que fazer uma faixa com funk, tá ligado?”. Não ia fazer sentido fazer outra parada. A gente já vinha da base do grime, muito agressivo. Quis tirar uma onda. Se deixar eu e o SD com uma caixa de Brahma, a gente faz um disco.
[Em “CARDS”, com] Bradockdan foi a mesma coisa: ritmo de São Paulo, aquela picota. É só ditar um ritmo da visão que a gente tem também sobre tudo que vimos. Essas duas faixas são coisas que já vivenciei de perto, de fato, sabendo o que acontece e qual é o movimento. Em uma eu quis ser mais leve, e na outra a gente foi um pouquinho mais denso.
E eu queria entender também um pouco mais da sua relação com o samba. Nos shows do Brime que eu vi você sempre faz uma palhinha e tudo mais, sem contar que vocês falaram que o gênero também influenciou o disco.
Cara, o samba sempre fez parte da minha vida. Ele remete muito ao almoço de família de domingo, aquela comunhão e união, com todo mundo junto. Festas de final de ano, aniversário. O samba me remete a isso. No fim do dia, eu quero sempre aproximar as pessoas, trazer elas pra perto do meu universo e que entendam onde estão.
A ideia do samba em si não é nem na parte musical, mas na ideia mesmo. O próprio Martinho da Vila, em alguns sambas, é muito complexo no que ele quer passar. E ele é profundo. Jorge Aragão é profundo no que quer passar. E aí eu trago um pouco dessa profundidade e dessa vontade de querer oferecer algo mais pro público, muito por influência do samba. O samba-rock, que é minha escola.
E isso também faz parte do processo. Passei uma semana produzindo o disco no Rio. A gente não saiu nenhum dia, mas eu te garanto que, se tivesse botado o pé pra fora pra tomar uma cerveja na esquina, ia estar tocando samba. Aquilo pode me influenciar a criar alguma melodia — como já foi feito. Pode me inspirar, trazer um tema diferente. Samba serve pra isso também.
+++LEIA MAIS: Tyler, the Creator merece ser mencionado entre os maiores do hip hop
O post O mundo segundo Fleezus: ‘A rua sabe como funciona o procedimento’ apareceu primeiro em Rolling Stone Brasil.