Guillermo del Toro (O Labirinto do Fauno) sempre foi atraído pelos monstros — não apenas pelas criaturas fantásticas que habitam seus filmes, mas também pelos monstros que carregamos dentro de nós. Em obras como A Espinha do Diabo (2001) e O Beco do Pesadelo (2021), ele enxerga o horror nos homens e adota um tom amargo, quase desencantado, diante da crueldade humana. Já quando volta o olhar para o outro lado — para os seres rejeitados, deformados, incompreendidos — como em A Forma da Água (2017), Pinóquio (2022) e agora neste novo Frankenstein, o cineasta se deixa guiar pela ternura. É quando seus filmes se tornam cartas de amor às criaturas, lembrando que, no fundo, os verdadeiros monstros raramente são aqueles que parecem ser.
Em Frankenstein, novo filme do diretor que chega em breve aos cinemas e, posteriormente, ao catálogo da Netflix, está na programação da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e apresenta Victor Frankenstein (Oscar Isaac, Moon Knight), um cientista brilhante, porém egocêntrico, que dá vida a uma criatura em um experimento que acaba levando à ruína tanto o criador quanto sua própria criação.
Nesta nova adaptação do clássico de Mary Shelley, del Toro dá à história um romantismo gótico inconfundível, um deleite visual e emocional que reflete o carinho e o fascínio que o diretor tem pela criatura. É um filme não apenas sobre monstros, mas feito por alguém que os ama profundamente. E essa devoção se manifesta sobretudo na atuação hipnotizante de Jacob Elordi (Euphoria), que dá vida — e uma comovente humanidade — à criatura. Sua interpretação é contida e dolorosa, feita de gestos quebrados e olhares aflitos, e que merecia maior sorte na temporada de premiações.
Del Toro transforma o clássico em uma fábula sobre o divino. O simbolismo é nítido: o “brincar de Deus” é um tema constante, reforçado por referências bíblicas, como na sequência da leitura da história de Adão e Eva feita pela criatura, e também por sua pose em formato de cruz ao ser eletrocutado por raios e, posteriormente, ganhar vida. O monstro de Elordi é como um Jesus Cristo — um ser criado à imagem de seu criador, rejeitado pelo mundo, condenado por ser diferente. Há um eco de redenção e sofrimento, de amor e ira. O eterno conflito entre pai e filho se desdobra em camadas: primeiro entre Victor Frankenstein e seu próprio pai (Charles Dance, Drácula: A História Nunca Contada), e depois entre Victor e a criatura — um reflexo trágico do mesmo amor distorcido que o criou.
Visualmente, Frankenstein é o que se espera do cineasta mexicano. A Netflix deu a del Toro a liberdade e os recursos que ele merecia, e o resultado é um espetáculo que remete à opulência de A Colina Escarlate (2015). Cada cenário é grandioso, decadente e belo, com suas sombras e luzes que parecem pulsar vida e, ao mesmo tempo, a morte — um espelho tanto do próprio Victor quanto da obsessão do próprio del Toro em dar forma ao inominável. A violência, por vezes chocante, nunca é gratuita. Ela se torna expressão dos males humanos e das feridas da criação. Quando a criatura se entrega à raiva, não é sua monstruosidade que transborda, mas sua humanidade. É o gesto mais humano possível: sofrer, amar e, por fim, destruir.
Muitos, inclusive o próprio del Toro e parte do elenco, como Mia Goth (MaXXXine), chegaram a firmar em entrevistas que Frankenstein não é um filme de terror. E é possível compreendê-los, ao menos em parte. O filme nasce do terror, mas é também uma obra de fantasia, ficção científica e drama. Ainda assim, não há como negar: este é um filme de terror em sua essência, mas um terror banhado pela melancolia do romantismo gótico de Shelley ao qual del Toro dá vida como poucos conseguiriam fazer.
Del Toro cria aqui sua obra mais humana — e talvez a mais pessoal — desde A Forma da Água. É o gesto de um homem apaixonado por tudo o que é imperfeito, que finalmente encontra em Frankenstein a oportunidade de declarar esse amor. Porque, no fundo, o que é um diretor senão um criador obcecado em dar alma ao inanimado, em transformar dor em beleza, sombra em poesia? Se Victor Frankenstein ergueu um monstro, Guillermo del Toro ergue um amor: um filme que pulsa com a ternura e a melancolia de quem acredita que até as criaturas merecem ser amadas. Frankenstein é seu filho e sua confissão: a mais pura e comovente declaração de amor a uma criatura, dentre todas as que já ganharam vida a partir de suas obras.
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