
Nos últimos anos, poucas estreias na música brasileira carregaram tanto significado quanto Boas Novas (2025), o primeiro álbum solo de Zeca Veloso. O disco nasce do encontro entre maturação técnica e uma dimensão espiritual profunda, e chega como síntese de um percurso artístico guiado por intuição, tradição e revelação — temas que atravessam tanto sua obra quanto sua vida. Em entrevista exclusiva com a Rolling Stone Brasil, Zeca define o projeto como um “presente” recebido de um lugar que ele próprio ainda tenta decifrar.
O disco, que chega após anos de colaborações com a família no projeto Ofertório (2018), incorpora camadas de experiência e transformação pessoal. Entre pausas, reinvenções e um período de recolhimento, o artista entendeu que a obra só poderia nascer quando estivesse “pronto por dentro”, espiritualmente e emocionalmente.
Nesse sentido, o tempo, em Boas Novas, é personagem — e também método. Zeca descreve o processo como um amadurecimento “musical, espiritual, mental, do coração, sentimental”, que só se completou quando a inspiração “chegou por completo”.
Em meio a esse percurso, o artista viu músicas do álbum ganharem vida antes mesmo de estarem concluídas. “O Sopro do Fole”, por exemplo, entrou na trilha sonora da novela Pantanal ainda antes de ser lançada oficialmente, como se anunciasse o caminho que o disco seguiria. E o gesto de revisar memórias — como a montagem do clipe de “Boas Novas” a partir de imagens de família — reforça o caráter afetivo, íntimo e ancestral que atravessa o álbum.
O disco como presente divino
Desde o início da conversa, Zeca retorna a uma imagem central para compreender Boas Novas: a obra vem de um lugar que, segundo ele, é “espiritual, divino”.
“Eu entendo que eu vejo esse disco como um presente que recebi de Deus”, diz, reconhecendo que a mensagem que deseja transmitir está “fora de mim, acima de mim, de alguma forma”.
A dimensão espiritual não está apenas nas letras, mas também na responsabilidade que Zeca sentiu ao conceber o disco. “Eu queria que o disco ficasse do jeito que ele parece apontar para merecer”, afirma. Para ele, a qualidade estética e a “missão” do projeto caminham juntas — e precisavam fazer jus à inspiração que acredita ter recebido.
Durante uma das pausas, mudanças e reconfigurações — como quiser chamar —, o artista relembra: “Eu precisei rever umas questões minhas, internas”. Durante esse intervalo, editou o clipe que acompanha o lançamento, construído com imagens históricas de sua família, que ganharam novo significado ao serem revisitadas agora.
O tempo, nessa narrativa, também serviu para que o artista deixasse de ser apenas colaborador e se tornasse protagonista de sua própria voz. “Eu nunca fui um músico profissional”, diz. O processo técnico exigiu dele tanto quanto o espiritual: foi necessário aprender, depurar ideias, experimentar formas e permitir-se amadurecer.
Herança, influência e identidade própria
A presença da família Veloso no trabalho é inevitável — e natural. Para Zeca, essa herança não é um peso ou sombra, é um fluxo orgânico que se mistura às influências de sua própria geração. “É natural que tenha coisas ali que têm a ver com o caminho do meu pai (Caetano Veloso) e dos meus irmãos… e natural que tenha também outras coisas que são da minha geração”, resume. Em vez de controlar distâncias ou proximidades, o artista preferiu permitir que o que fosse verdadeiro emergisse espontaneamente dentro do disco.
Além disso, Zeca não esconde a admiração nem a inspiração que carrega: “Eu me inspiro muito nele… na letra, nas ideias e no pensamento dele. Me influencia muito”. Entretanto, Caetano pai opera em uma esfera quase inatingível, onde a criação flui sem esforço visível, enquanto Caetano filho se apoia em outra forma de energia: “Embora para ele seja muito mais fácil do que para mim. Eu dependo dessa inspiração que vem de um outro lugar, espiritual”. É nesse contraste que Boas Novas encontra parte de sua identidade: uma obra que honra a herança, mas nasce de um impulso íntimo e singular.
Essa ligação familiar, porém, vai além da influência artística. Ela se manifesta também no modo como o álbum foi recebido por aqueles que o viram crescer — uma aprovação que, para Zeca, tem um significado que ultrapassa qualquer crítica externa. Quando mostrou o disco pronto, a reação foi imediata e calorosa: “Eles gostaram. Ficaram impressionados e orgulhosos”.

Ao falar desse processo, Zeca faz questão de desviar os holofotes do individual e projetá-los sobre o coletivo que o acompanhou. “Devo muito a todos esses colaboradores…”, afirma, antes de citar de maneira linda um a um, da família aos músicos, arranjadores e produtores que ajudaram a dar vida ao álbum.
Esse caráter coletivo, inclusive, é um dos pontos que mais aproximam Boas Novas da tradição da própria família Veloso e da MPB como um todo: um lugar onde discos não são apenas obras individuais, mas encontros de trajetórias, sensibilidades e afetos. Para Zeca, essa lógica não é apenas herança; é também escolha. Ele reconhece que o álbum só alcançou sua forma definitiva porque se abriu ao outro — seja esse outro um familiar, um parceiro musical, um arranjador ou mesmo uma força espiritual que o guiou durante o processo.
A partir desse entrelaçamento de influências e pessoas, emerge o traço central de Boas Novas: o diálogo constante entre herança e autonomia. Zeca aparece como um artista que não renega a linhagem que o antecede, mas tampouco se limita a ela. Ele transforma influência em impulso, memória em caminho e afeto em estrutura estética. Assim, o disco se torna um território onde o íntimo e o universal se encontram — algo que sempre marcou a música brasileira, mas que agora encontra nele uma nova voz.
Esse movimento de abertura também reverbera na forma como ele enxerga o contato com os jovens. Zeca observa com naturalidade a nova onda da geração Z em direção à MPB e entende que Boas Novas dialoga com esse momento não por estratégia, mas por essência. “É legal misturar tradição e inovação, fico feliz de poder fazer parte de alguma coisa que agrade a geração Z. Também sou jovem”, afirma. Seu disco se coloca, então, como ponte entre diferentes tempos e diferentes maneiras de ouvir.
Apesar disso, o artista não atribui ao álbum a missão de representar uma geração específica. Sua intenção é mais ampla, mais aberta e, de certa forma, mais generosa. “Eu gostaria de alcançar todos os públicos possíveis, porque eu acredito que é uma mensagem boa, uma mensagem que faz bem”, reflete. Essa vocação expansiva é o que permite que Boas Novas circule entre camadas diversas de ouvintes, mantendo-se fiel à espiritualidade que o originou.
A travessia até “Boas Novas”
Se Boas Novas nasce como obra espiritual e afetiva, sua construção também se sustenta em uma cadeia de encontros, parcerias e amadurecimentos que deram corpo ao disco. Zeca destaca a importância dos colaboradores que o acompanharam durante o processo, cada um contribuindo para que a obra alcançasse o nível artístico que ele sentiu que “merecia”.
Entre esses encontros, um dos mais marcantes foi com Xande de Pilares, cuja participação ganhou peso emocional e musical no álbum. Na entrevista, Zeca não esconde o impacto dessa presença. Para ele, Xande interpreta, amplia e ilumina. “É ele que faz a faixa, é quando a coisa fica boa [risos]”, conta, revelando a dimensão quase celebratória que o samba imprime à narrativa espiritual do disco.

E o curioso é que essa colaboração carrega exatamente o espírito de espontaneidade que atravessa Boas Novas. Zeca conta que ideias surgiram de forma despretensiosa, quase acidental, em meio a encontros informais, conversas soltas e momentos de pura troca humana. O samba, nesse contexto, funciona como um sopro que abre espaço para luz e movimento dentro do universo meditativo do álbum.
Essa presença também ajuda a mostrar a natureza híbrida do disco, que oscila entre devoção e festa, contemplação e vibração. Se Boas Novas nasce de uma experiência espiritual e delicada, são colaboradores como Xande que o ancoram no mundo, trazendo calor, ritmo e humanidade. O resultado é um álbum que não flutua apenas no campo do sagrado; ele respira, sorri e se alegra. Boas Novas encontra, assim, seu equilíbrio: o céu de Zeca com o chão dos encontros.
No final da entrevista, com o desafio de resumir seu novo disco em três palavras, Zeca fugiu do convencional. Enquanto muitos trazem adjetivos, características ou sensações, ele foi no simples — mas divertido:
“Boas, novas, ouça”.
E completa sua mensagem ao ouvinte: “Quero saber o que você achou… principalmente se for negativo. O negativo é muito mais útil que o positivo. Mas eu espero que receba a mensagem de coração aberto, porque eu fiz também de coração aberto”, finaliza.
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