
No Other Choice, candidato da Coreia do Sul ao Oscar 2026 e apresentado na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é mais uma prova de que o cinema sul-coreano está conectado às tendências do mundo contemporâneo e é capaz de se reinventar e continuar criativo após o fenômeno Parasita, de Bong Joon-ho.
Em seu novo filme, Park Chan-wook (A Criada) retoma sua maestria em explorar moralidade ambígua e tensão social, desta vez focando na decadência da classe alta diante do capitalismo selvagem. O desespero do protagonista, um homem que tem uma vida aparentemente perfeita e acaba demitido, transforma-se em estudo mordaz sobre status, aparências e a fragilidade das vidas confortáveis.
A narrativa acompanha Man-su (Lee Byung-hun, Round 6) enquanto sua vida dos sonhos desmorona. Especialista em fabricação de papel, com 25 anos de experiência, ele leva uma vida tão plena que pode dizer a si mesmo, com convicção: “Tenho tudo o que preciso”. Ao lado da esposa, Mi-ri (Son Ye-jin, Pousando no Amor), dos dois filhos e de seus cães, ele vive dias felizes, até ser surpreendido pela notícia de que foi demitido.
O choque é devastador, mas Man-su promete a si mesmo que encontrará um novo emprego em três meses pelo bem da família. No entanto, a realidade se revela bem mais complicada. Apesar da determinação, ele passa mais de um ano pulando de entrevista em entrevista e se sustentando com um trabalho no comércio.
Em pouco tempo, começa a correr o risco de perder a casa pela qual tanto lutou. No desespero, aparece de surpresa na Moon Paper para entregar seu currículo, mas acaba humilhado pelo gerente. Convencido de que é mais qualificado do que qualquer candidato para trabalhar na empresa, Man-su toma uma decisão drástica.
Com humor afiado, No Other Choice mostra até onde esse homem está disposto a ir para manter sua posição confortável na sociedade e conseguir a vaga de emprego que tanto almeja: matar seus principais concorrentes pela vaga — isso pode ser visto como um spoiler, mas o importante é a forma com que Park desenvolve tudo. As cenas de assassinato, exageradas e desastradas, remetem ao melhor do cinema sul-coreano — e também a Fargo — nessa comédia de erros que equilibra absurdo e tragédia. Cada tropeço, golpe ou embate físico reforça a sensação de caos, transformando o desespero em momentos tragicômicos e divertidos — destaque para uma sequência em que três personagens disputam uma arma enquanto a música está super alta.
Lee Byung-hun domina a tela com um misto de desespero, nervosismo e timing cômico impecável, enquanto Park observa cada gesto da família com precisão cirúrgica, construindo um retrato da elite moralmente vulnerável, obcecada por status e incapaz de lidar com a própria decadência. O olhar do diretor sobre essa dinâmica familiar adiciona densidade à trama: a esposa vivida por Son Ye-jin surge como contraponto sensível às obsessões do marido, enquanto a filha mais nova, talentosa no violoncelo, revela a fragilidade emocional da casa ao lamentar a ausência dos cachorros da família — calma, leitor, eles apenas foram morar com os avós.
O filme mantém o espectador em alerta ao equilibrar humor físico a esta tragédia cotidiana. Cada cena reforça o contraste entre o conforto ilusório dos personagens e o colapso que os cerca. A observação social é incisiva, mas nunca moralista, revelando que o vazio da classe alta pode ser, sob a lente de Park, simultaneamente cruel e engraçado. Mesmo sem recorrer à violência extrema que marcou trabalhos anteriores do diretor, No Other Choice não perde intensidade. A identidade visual que o diretor imprime, seja nos enquadramentos ou nos cortes milimetricamente pensados, amplificam a tensão dos personagens e a urgência dos acontecimentos.
Vale citar a semelhança desta fita sul-coreana à de uma vizinha japonesa. Embora partam de contextos distintos, tanto Cloud – Nuvem de Vingança, de Kiyoshi Kurosawa (A Cura), quanto No Other Choice compartilham de uma decadência moral e emocional provocada pela sobrevivência em sociedades obcecadas por status e lucro. Tanto Kurosawa quanto Park filmam personagens que, diante da falência de seus mundos, tornam-se espectros de si mesmos — tentando manter o controle sobre algo que já não existe, seja a estabilidade financeira, seja o próprio senso de humanidade.
Se Kurosawa observa essa ruína com frieza clínica, Park a transforma em tragicomédia. No fundo, ambos filmes tratam das mesmas sociedades em colapso — e a última cena de No Other Choice deixa isso evidente —, onde a competição sufocou qualquer traço de solidariedade. O que antes era exceção — o egoísmo, o desespero, a violência — tornou-se regra: sintomas de um capitalismo cada vez mais selvagem.
No fim, No Other Choice deixa uma impressão duradoura: não há redenção, apenas o esforço frenético e sem limites de preservar as aparências. É um estudo preciso sobre essa decadência e pressão social embalado com um humor afiado que confirma Park Chan-wook como um dos cineastas mais inventivos e sofisticados do cinema contemporâneo.
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