
Depois que o autor Richard Bachman foi desmascarado como pseudônimo de um dos escritores de língua inglesa mais populares do fim do século XX, seu criador sentiu a necessidade de explicar o “porquê” de tudo aquilo. No prefácio de Os Livros de Bachman — coletânea que reuniu quatro novelas escritas sob esse nome —, Stephen King explicou que adotou o alter ego literário parcialmente como um “teste às cegas” para os leitores e parcialmente como uma forma de publicar mais obras sem saturar o mercado. No entanto, havia outro motivo, que pode ser lido nas entrelinhas do que King descreve como “o estado de espírito Bachman: raiva contida e desespero latente”. Aquilo não era apenas um pseudônimo. Era também uma válvula de escape para um verdadeiro Bachman-King Overdrive.
O autor por trás de O Iluminado (1977) nunca evitou mergulhar na escuridão, mas a identidade secreta lhe permitiu acessar algo ainda mais psicologicamente perturbador do que São-Bernardos raivosos ou Plymouths possuídos por demônios. Ele era o Id, o lado sombrio — o tipo de escritor que poderia dar ao ícone do terror literário uma plausível negação. O medo agora vinha misturado a aversão, angústia e uma dose cavalar de fúria pura e direta. Bachman não era King. E isso nunca foi tão evidente quanto em sua história O Concorrente (nos cinemas, o filme foi traduzido para português do Brasil como O Sobrevivente).
Não, não estamos falando do filme de 1987 que distorceu o material sombrio e distópico da fonte original em um festival de frases de efeito e queijo derretido para Arnold Schwarzenegger. Estamos falando do conto de Bachman sobre uma nação devastada pela pobreza e pela doença, controlada por uma mídia em conluio com o governo e satisfeita em se divertir até a morte assistindo a programas de competição na TV em que os participantes ganham prêmios em dinheiro se conseguirem evitar ser assassinados em transmissões ao vivo no horário nobre. A premissa é de alto conceito. A sátira é ampla. O livro em si é mais bruto e difícil de ler do que se imagina. Foi escrito em 1982, mas ambientado em uma versão futurista de 2025 que… bem, soa próxima demais para o conforto.
É essa a vibração que Edgar Wright está perseguindo em sua versão de O Concorrente, que segue de perto o texto original, com uma fidelidade quase de devoção. Ah, tem ação — muita ação — e piadas internas, com o tipo de formalismo extravagante e senso de humor distorcido que se espera do autor de Todo Mundo Quase Morto (2004), Chumbo Grosso (2007) e Scott Pilgrim Contra o Mundo (2010). O filme também tem um trunfo nas mãos: Glen Powell, um dos poucos atores contemporâneos com carisma alfa que parecem feitos sob medida para esse tipo de papel — e que poderiam muito bem ter sido “cultivados” em uma fazenda no interior dedicada a criar astros de cinema norte-americanos com sorrisos de um bilhão de watts. Mas, apesar de toda a diversão de blockbuster que Wright invoca com essa releitura exagerada da ficção científica distópica, a sensação predominante aqui é o medo. A maioria dos cineastas teria diluído a aspereza e o verdadeiro senso de queda moral. Wright duplica a dose. Cada descarga de adrenalina vem acompanhada de uma dose de raiva contida e desespero latente.
A raiva é, de fato, o modo padrão do herói do filme. Powell empresta a Ben Richards — o homem comum da classe trabalhadora com um longo histórico de insubordinação no trabalho — sua aparência de galã musculoso e seu vigor atlético convincente. (Afinal, o “homem que corre” precisa correr — e muito!) Ele também é um verdadeiro bom samaritano, o que costuma resultar em péssimas consequências em uma sociedade que valoriza a sobrevivência darwinista mais do que a empatia. Mas Richards também é o tipo de pessoa que vai do zero ao soco num instante, e sua temperatura emocional está sempre em ponto de ebulição. Esses problemas de raiva são o que chama a atenção dos executivos da emissora quando ele chega ao escritório de recrutamento de um programa de TV. A filhinha de Ben está doente, e remédios do mercado negro custam caro. Uma participação rápida em algo como Speed the Wheel (responder perguntas de trivia em uma roda de hamster gigante, que acelera quando ele erra uma) pode render um dinheiro rápido. Tempos desesperados, etc.
Richards é escolhido pessoalmente pelo produtor de TV Dan Killian (Josh Brolin, em modo sangue-frio) para o maior programa de todos: O Sobrevivente, o número um da emissora. O objetivo: ficar vivo por 30 dias e ganhar um bilhão de dólares. A pegadinha é que ele será caçado por McCone (Lee Pace), um perseguidor com um histórico impecável de capturas e mortes, e seus capangas psicopatas. Cidadãos comuns são recrutados para denunciar qualquer avistamento de competidores por meio de uma linha direta. Os delatores não levam pontos nem punições — levam prêmios em dinheiro.
Richards, com dois outros competidores (interpretados por Katy O’Brian e Martin Herlihy, do Please Don’t Destroy), precisa evitar os olhos sempre vigilantes do estado de vigilância, permanecer escondido, em constante movimento. Se matarem um caçador, ganham um bônus. Cada participante precisa enviar gravações diárias; falhar em criar conteúdo leva à desclassificação imediata. O apresentador superpopular do programa, Bobby T. (Colman Domingo), aparece todas as noites no “FreeVee”, mantendo os espectadores atualizados sobre as estatísticas e inflamando o ódio público com a mesma “veracidade escorregadia” de um âncora da Fox News.
Quando King/Bachman imaginou esse cenário nos primeiros anos da era Reagan, ele era apenas ridículo o suficiente para ser, ao mesmo tempo, risível e repulsivo — e cínico o bastante para funcionar como uma parábola de advertência ao estilo de Jonathan Swift. O Concorrente reimaginado para o presente equivale à sensação de já ter caído na toca do coelho; e, embora Wright mantenha tudo em ritmo acelerado, ele não tenta exatamente esconder os comentários ou as comparações. Se o programa fosse proposto hoje, os serviços de streaming estariam disputando os direitos a tapas. Nem o corretor de poder narcisista vivido por Brolin, nem o mestre de cerimônias caricato de Domingo parecem necessariamente caricaturas. Eles são suficientemente desprovidos de alma para parecer candidatos plausíveis a cargos na atual administração. A resistência aparece na forma de um ex-membro de gangue que edita reportagens-denúncia no estilo Elephant Graveyard sobre o programa, e de um revolucionário que imprime panfletos (Michael Cera) com uma rixa pessoal contra a polícia. Ambos os aliados subterrâneos estão presentes no livro também, mas soam bem diferentes em um clima no qual pedir à mídia corporativa que não ceda à pressão — ou simplesmente denunciar fascistas — é visto como subversão radical.
Desculpe, parece que estamos sugerindo que O Sobrevivente foi transformado em uma aula de duas horas de Noam Chomsky? Ainda é um espetáculo hollywoodiano — completo com explosões, celebridades e trilha sonora afiada —, polido o suficiente para deixar a Paramount satisfeita sem irritar os censores internos, mas ainda assim descolado o bastante para não parecer um produto de linha de montagem. Wright é geneticamente incapaz de fazer um filme que não se mova, e é possível sentir seu entusiasmo de cinéfilo irradiando da tela toda vez que uma piada visual ou um efeito especial funciona perfeitamente. Powell prova que pode conduzir cenas de perseguição, sequências de ação repletas de dublês e até uma fuga “com pouca roupa”, digna de Harold Lloyd, com a mesma destreza de qualquer astro milionário de hoje. Mesmo os coadjuvantes mais sisudos parecem estar se divertindo.
Mas há um gosto de cinzas contaminando a diversão de pipoca. E quando O Sobrevivente desacelera em seu último quarto, reproduzindo o ato final do livro — que envolve uma refém (Emilia Jones, de CODA), um confronto derradeiro com McCone e um avião sequestrado —, começa-se a sentir o desespero latente da mentalidade Bachman vindo à tona. Um tiroteio em pleno voo soa como um detalhe de última hora, pontuando repetidas mensagens de que, como nos cassinos, “a casa sempre vence” quando se trata de manipulação corporativa. O ritmo e o ânimo caem. Leitores que se lembram do desfecho do livro vão se dividir entre euforia e náusea diante do compromisso desta adaptação fiel em seguir o espírito do texto; King foi extremamente irônico ao chamá-lo de “a versão Richard Bachman de um final feliz”.
Wright, no entanto, adiciona um epílogo que, sem revelar nada, introduz algo a mais ao jogo de soma zero. Em outra época, o gesto poderia parecer barato — uma saída fácil que sugere universos cinematográficos, continuações e uma velha e boa retribuição moral. Agora, porém, a mudança surfa na sensação de tentar manter a fé na curva da história, mesmo quando isso parece inútil. O Sobrevivente sabe que as coisas estão sombrias. Mas isso não significa que correr em direção à luz deixou de ser um ideal. Ou, em outras palavras: Bachman zombaria do ponto onde o filme deixa o público. Mas Stephen King aprovaria.
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