Você o ouve antes de vê-lo. Primeiro, aparecem desenhos infantis de soldados e conflitos, bandeiras irlandesas, pubs em chamas e corpos separados de seus membros. Em seguida, surge uma paisagem campestre, um retrato da natureza que seria idílico, não fosse o céu cinza ameaçador. Uma tempestade não muito distante está claramente se formando. Há silêncio. E então, o som de um trabalho árduo. Vemos um vislumbre de uma figura curvada e musculosa, de costas para a câmera. Ele parece estar arrancando raízes de algo no solo pedregoso — um gesto que se tornará muito mais simbólico à medida que a história avança. É impossível não pensar em outro homem misterioso, aparentemente em guerra com a própria terra. Seu rosto permanece oculto. Ainda assim, ele parece familiar.
Anemone, a estreia em longa-metragem do escritor, artista e cineasta Ronan Day-Lewis, será celebrada, antes de tudo, como o retorno de Daniel Day-Lewis — vencedor do Oscar, lenda absoluta da atuação, o epítome da dedicação ao ofício — quase uma década após anunciar que havia deixado para trás o “andar e esbravejar” dos palcos. (O filme estreou no último domingo, 28, no Festival de Cinema de Nova York e ainda não tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros.)
“A gente só dá valor quando perde”, como dizem, e assistir ao veterano Day-Lewis interpretar Ray Stoker, um ex-soldado britânico vivendo em exílio autoimposto, exemplifica por que sua ausência deixou o cinema um pouco mais pobre. Aquela alquimia particular — em que a combinação de um certo intérprete e uma câmera cria tanto um “momento” quanto algo muito além disso — já está presente em suas primeiras aparições sem falas. É um lembrete do porquê ele é citado com tanta admiração e reverência, e de como sua reputação como um dos atores mais fascinantes e camaleônicos de todos os tempos é mais do que merecida. (Sem querer fazer um “melhores momentos”, mas: todos esses papéis foram vividos pelo mesmo ator.)
Ainda assim, a tentação de tratar esse olhar extraordinário sobre como legados de dor reverberam por meio de gerações apenas como uma vitrine para a formidável disciplina e talento da estrela precisa ser deixada de lado, pois isso seria diminuir o próprio filme. Anemone é tanto uma introdução a um artista quanto uma reintrodução a uma presença ausente das telas. E mesmo quando se aproxima daquele território de “estética de cinema de arte” que pode provocar revirar de olhos, esta exploração do que se esconde nos silêncios entre laços de sangue — e da dificuldade de superar as próprias tragédias do passado — faz você sentir que está assistindo a algo verdadeiramente único. É o trabalho de um jovem cineasta. Mas também é, muito claramente, a obra de um verdadeiro cineasta, repleto de criatividade e refinando sua visão em tempo real. Para citar outro membro dessa família de cinéfilos: é preciso prestar atenção.
Atenção, ironicamente, é a última coisa que Ray deseja. Ele vive em solitária autossuficiência nas florestas do norte da Inglaterra há décadas, cuidando de feridas psíquicas. Chamá-lo de estoico seria pouco. Ele não está geograficamente distante da civilização, mas bem poderia estar a milhares de anos-luz, e você se pergunta quanto tempo faz desde que ele trocou mais que poucas palavras com outro ser humano. Ray não tem contato com a família há eras, mas isso está prestes a mudar. Seu irmão, Jem (Sean Bean), ajudou a criar Brian (Samuel Bottomly), filho de Ray, como se fosse seu próprio filho. Mas ele está preocupado com o sobrinho, já que o jovem demonstra a mesma volatilidade e propensão à violência do pai desaparecido. As feridas ensanguentadas nos nós dos dedos de Brian dizem muito.
Esse rapaz de 20 anos, assim como o pai, entrou para o exército. Houve um incidente, e agora Brian precisa enfrentar as consequências de suas ações. Mas a mãe do garoto, Nessa (Samantha Morton), acredita que talvez exista uma maneira de impedir que o filho perca completamente a alma. Essa maneira envolve Ray. Assim, como em um conto de fadas, Jem precisa se embrenhar na floresta e trazer o irmão há muito afastado de volta ao convívio. Ele tem apenas as coordenadas de latitude e longitude do paradeiro do parente, nada mais. Algum tempo depois, Ray está absorto em seu trabalho quando ouve um barulho do lado de fora da cabana. Vemos quando ele pega um machado, a câmera fechando em sua mão firme, pronta para a batalha. Então, um estalido é ouvido, como se alguém batesse um código. A mão de Ray relaxa no cabo da arma. Ele sabe quem está do lado de fora.
São toques econômicos como esse, em que um simples gesto não verbal revela tudo, que deixam claro que há um contador de histórias silenciosamente dinâmico por trás da câmera. Anemone tem muitos desses enquadramentos contidos e precisos, que equilibram alguns dos floreios mais ousados e das digressões alucinatórias em cena; uma simples conversa entre esses irmãos combativos pode dar lugar à imagem de uma mulher angelical brilhante flutuando sobre a cama de Ray, ou à aparição de uma criatura de pescoço alongado, rosto humano e um minúsculo pênis. (Ajuda saber que Ronan também é pintor e escultor, e que essa criatura enigmática tem ligação com trabalhos anteriores dele.) O que começa como realismo cru de “pia de cozinha” pode de repente se transformar em hiper-realismo à la David Lynch, e a mistura particular de Anemone — parte peça de dois personagens a Samuel Beckett, parte drama de trauma, parte instalação que explora a masculinidade como uma prisão de múltiplas celas — corre o risco de afastar tantos espectadores quanto impressiona.
Nenhuma das categorias mencionadas acima costuma incluir, como peça central, uma anedota arrebatadora envolvendo um agressor, um confronto e a súbita expulsão de várias refeições de curry com Guinness. Mas acredite quando dizemos que a versão de Daniel Day-Lewis dessa história de vingança escatológica é, por si só, uma aula magistral de monólogo. É hilariante, horrível e soa como uma sinfonia de suítes igualmente profanas. Pai e filho dividem os créditos de roteiro do filme e, embora o veterano Day-Lewis tenha aparentemente improvisado essa lembrança de defecação épica durante suas conversas — pode-se dizer que simplesmente explodiu de seu subconsciente como um gêiser —, o momento revela uma colaboração tão afinada que tudo permanece coerente com o personagem e em perfeita sintonia com o restante da obra. Ronan pode ter libertado o kraken ao permitir que seu protagonista explorasse um terreno tão indomado à vontade, mas prepara o filme para acomodar tanto expressões silenciosas quanto arroubos estratosféricos. A atuação central nunca eclipsa o filme: ela parece contida em algo que se expande e se contrai conforme necessário.
Vale dizer que o restante do elenco — sim, os que não se chamam Daniel Day-Lewis — está igualmente afiado. Sean Bean funciona como âncora e parceiro de embate à altura de seu colega. Como a exausta esposa de Ray, Samantha Morton prova mais uma vez ser uma “atriz de seis polegadas” — isto é, basta colocar a câmera a quinze centímetros de seu rosto e ela entrega uma performance completa de ponta a ponta em um único close. Você sente que conhece essa mulher, apesar do pouco tempo em cena e de ainda menos falas. Bottomley trouxe profundidade ao personagem de moral duvidosa no perturbador filme de amadurecimento How to Have Sex (2023), de Molly Manning Walker, e faz o mesmo aqui com o jovem fechado em risco de sucumbir à maldição da família.
E, naturalmente, é impossível esquecer que Ray é o personagem no centro de tudo — aquele que, como a flor que dá nome a Anemone, fecha suas pétalas quando a tempestade se aproxima. A entrega radical de Day-Lewis a esse homem dilacerado garante que seus tormentos deem ao filme uma qualidade de bomba-relógio, e seu olhar final, um estado de graça. Mesmo quem possa criticar a estreia de direção por, às vezes, ceder à ansiedade da influência, reconhecerá a façanha que ela representa. Esqueça, por um momento, que isso pode ser tanto um extraordinário ponto fora da curva para o lendário ator quanto o início de um novo e fértil capítulo. Encare mais como o produto de dois artistas, de gerações diferentes, que encontraram um terreno comum e fizeram brotar dali algo extraordinário.
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