Sample, uma palavra em inglês para “amostra”, no universo da música, é um recorte feito a partir de uma gravação original que passa a integrar uma nova gravação. Quando produzimos uma música podemos fazer o uso do sample, escolhendo o trecho da música, recortando-o e inserindo na nova gravação como uma citação, como base instrumental ou mesmo como parte de uma canção. Gosto de usar a faixa “Mara”, de Luedji Luna, produzida por ela, Kato Change e por esse que vos escreve. No final da canção é possível ouvir a voz de Milton Nascimento. Milton não estava presente na gravação atual, ali é um sample, um recorte extraído da música “Beijo Partido”, de Toninho Horta, gravado pelo cantor no álbum Minas (1972).
O sample sempre carrega uma história própria: é como uma fotografia musical, com seu cenário, iluminação, direção de arte, figurino e personagens particulares. A mera citação de um sample, como fiz acima, convoca-nos a pensar sobre quem são os intérpretes, compositores, artistas, músicos, engenheiros de som, produtores e todo ecossistema de uma gravação. Para os ouvidos, curioso como os meus e atentos, o sample é sempre um convite a mergulhar fundo na música.
2024 foi considerado o ano dos samples brasileiros nas produções internacionais, mas a verdade é que, desde que os produtores começaram a escavar os álbuns brasileiros, não pararam mais.
Só a versão de “Garota de Ipanema”, de Astrud Gilberto com Stan Getz, de 1964, já serviu de molho para Bad Bunny, maior artista latino do Spotify (em números), em 2020, com a música “Si Veo a Tu Mama”; serviu para SZA em “BMF” em 2024 e mais outras 12 faixas lançadas desde os anos 1990 até hoje.
Mas não só de velhos clássicos eles se alimentam, e um sample do funk “Aquecimento das Danadas”, de O Mandrake. Charopinho Dj, ajudou Beyoncé a conquistar o inédito Grammy de Melhor Álbum do Ano com Cowboy Carter (2024). A faixa aparece sampleada em “Spaghetti”. Além da Queen B, outros artistas também escavaram samples na produção do funk nacional.
No álbum de estreia da dupla Kanye West e Ty Dolla Sign, Vultures, de 2024, encontramos um sample do funk “Faz Macete 3.0” na faixa “PAPERWORK”. Nesse mesmo álbum colaboram como produtores Vitinho BDP, produtor da faixa original, como também JPEGMafia, famoso DJ de NY que também se encantou pelo funk e na faixa “Its’ Dark and Hell Is Hot”, sampleou “Upa Upa Pocotó X 170bpm”, de DJ RaMeMes.
Outra faixa que não sai das MPCs (instrumento usado para samplear) é “Onda“, de Cassiano. Ano passado, 2024, o francês Folie’s a usou em “BAD!”. Mas NxWorries já a tinha sampleado em 2015 em “Link Up” feat. Anderson .Paak e em 1977, o trompetista Fred Hubbard, não bem sampleou, mas regravou as mesmas linhas de guitarra originais da faixa “From Now On”, de Cassiano, em 1976. Acredito que, além da voz de Cassiano, o que chama a atenção nesse clássico do Soul brasileiro é também a linha de baixo de Paulo César Barros, que dá todo balanço, junto da bateria. Cassiano também aparece no lançamento de 2024, de J. Cole, “A Plate of Collard Greens” no sample da faixa “Castiçal” de seu álbum Apresentamos Nosso Cassiano, de 1973.
Também com forte produção nos anos 1970, Ivan Lins é um artista muito querido lá fora antes mesmo do episódio em que recusou a proposta de Quincy Jones para ceder a música “Novo Tempo” para o álbum mais vendido da história, Thriller, de Michael Jackson. Em 2024, Common e Pete Rock lançaram “Fortunate” e, nela, ouvimos o sample de “Guarde nos Olhos”, de 1978, de Ivan Lins. Abrindo esse portal e ouvindo a original, encontramos na mesma faixa um lindo solo de gaita de Maurício Einhorn. Outro sample brasileiro, também presente no álbum The Auditorium, de Rock e Common, porém cantado em inglês, aparece na faixa “Everything’s So Grand” com a voz de Maria Bethânia, interpretando a música “What’s New”, em seu disco A Tua Presença, de 1971.
Além de Ivan, outro muito querido é Luiz Bonfá, sampleado mais de cem vezes em diversos trabalhos, desde os anos noventa até hoje em dia. O sample de sua música instrumental “Seville” usado por Gotye em “Somebody That I Used To Know”, rendeu, ao mesmo, o primeiro lugar no top das paradas de mais de 30 países e o Grammy de Música do Ano, em 2013. A mesma faixa também foi sampleada por outra vencedora do Grammy, Doechii, na faixa “Anxiety”, de 2025 ano e já lhe rendeu o top 10 de mais de sessenta paradas.
A lista se estende entre artistas de variados gêneros musicais e países, não se restringindo aos Estados Unidos apenas. Nossa produção fonográfica, via sample, está em todos os continentes do planeta e é uma representação da potência que sempre foi a nossa música.
Há muito tempo o mundo está olhando e valorizando a produção daqui, a história daqui, nossos clássicos que fundaram e abriram caminho para a música brasileira que ganha o mundo. Seja MPB, samba, soul, funk 150bpm, mandelão ou tamborzão, nossa criatividade é talvez o que desperta tanto interesse em quem olha de fora para nossa música.
Importante que esse olhar de fora para dentro que, não só é valorizado, como também funciona como uma chancela para o que é a “música boa”, passe também a vigorar de dentro para dentro, entre nós e que artistas nacionais passem a ser valorizados por seus legados, ainda em vida.
A música negra do Brasil e do mundo não seria a mesma sem a existência de Cassiano, tão celebrado nos samples. No entanto, o artista nos deixou em 2021, sem figurar em nenhum festival, sem ter surfado no hype da pulverização de sua música via samples, fora esquecido durante uma década inteira, praticamente nos anos 1990 e morreu em um hospital público, no subúrbio do Rio de Janeiro.
Que outros artistas celebrados pela cultura do sample tenham sua importância reconhecida ainda em vida e que de fato essa cultura sirva mais do que um suporte musical, que seja um portal para visitarmos a fundo e reverenciarmos a obra de quem pavimentou o caminho que podemos trilhar hoje livremente.
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