Em 2019, o Brasil acordava com a triste notícia do incêndio no Museu Nacional e ali, de mãos atadas, víamos nossa história sendo tomada pelas chamas. Noventa por cento do acervo em cinzas em um tempo muito menor do que os 200 anos da instituição. As causas do incêndio nos levam a um problema maior ainda no país: preservamos pouco a nossa memória, logo também, a acessamos com muita dificuldade, quando conseguimos.
Ver esse triste episódio me levou a um triste comparativo, de como as coisas poderiam se dar aqui nesse país, semelhante ao que fez o National Museum of African American History and Culture (Museu Nacional de História e Cultura Afroamericanas) ao disponibilizar um andar inteiro para contar sobre as “encruzilhadas musicais” que marcaram a música negra dos EUA, na exposição permanente intitulada Musical Crossroads. O acervo conta com diversos objetos que contam a história da música de lá e, antes que você questione a soberania nacional de minha coluna para a Rolling Stone Brasil, garanto que tudo isso aqui é também sobre nós. Entre os objetos curados pela Dra. Dwandalyn Reece, encontram-se o trombone de Fred Wesley, inventor com Maceo Parker e James Brown da linguagem de naipe de metais do Soul, do Funk; o trompete periscópio de Dizzy Gillespie, baluarte do bebop jazz; a guitarra do inventor do rock and roll, Chuck Berry, entre outros artigos não necessariamente musicais, como a jaqueta de Victory, de Michael Jackson, e os icônicos Adidas de Run DMC.
Enquanto nossa história ardia em fogo, outra história era preservada e enaltecida. Hoje quero enaltecer também outro gênio da música, que nos legou simplesmente o samba como conhecemos atualmente: Alcebíades Barcelos, ou simplesmente Bide.
Para isso, vamos voltar lá para 1924, com a gravação do samba carnavalesco Panela Furada, na interpretação do cantor Baiano. Dificilmente alguém dos tempos atuais iria considerá-la um samba. E arrisco dizer, se questionado o porquê, provavelmente vão dizer que falta “ritmo”, uma marcação. O instrumento responsável pela marcação no samba é o surdo, uma invenção do sapateiro Bide, a partir de uma lata de manteiga — uma latona, como era naquela época. Bide, que também é um dos fundadores da escola de samba Estácio de Sá, criou o surdo pela necessidade de se ter um instrumento que marcasse o pulso do samba para que o bloco pudesse desfilar. Na gravação do programa Ensaio de 1991, pela TV Cultura de São Paulo, Fernando Faro conduz uma entrevista com um dos parceiros de Bide, Mestre Marçal, a pessoa responsável por orquestrar o célebre quarteto no samba: tamborim, surdo, pandeiro e cuíca, e que, sem dúvidas, mereceria uma coluna, e também um espaço nos museus só para ele.
Quero convidar sua mente a imaginar como Bide fez o primeiro surdo da história, segundo o próprio Marçal: “Bide foi o inventor do surdo no samba (…) ele pegou um saco de cimento, umedeceu o papel e botou naquela lata de manteiga de 20kg, amarrou com um arame (…) deu um calorzinho no fogo só para dar uma sonoridade”. Essa obra de luthiaria era o primeiro passo para a criação da batucada que entendemos e sentimos no corpo quando toca um samba.
O marco dessa batucada está registrado no samba de 1929, “Na Pavuna“. Gravado apenas quatro anos após “Panela Furada“. Nele, podemos notar uma verdadeira revolução musical, graças à genialidade de Bide, Marçal e os sambistas do Estácio.
O surdo, fruto da inventividade de um homem negro do início do século passado, é esse instrumento que faz o samba chegar pelo seu pulso, antes mesmo de avistarmos a roda de samba, há centenas de metros de distância; é o instrumento que nos lembra a experiência telúrica do samba, naturalmente onírico por sua poesia, melodia e harmonia. Surdo é chão.
Nesse mesmo chão pisaram nossos ancestrais. Nesse chão, criou-se livremente o mundo que desfrutamos hoje e damos continuidade com criações. Tudo isso é memória, a mesma que não é devidamente preservada em nosso país, infelizmente.
Naquela noite triste do incêndio do Museu Nacional, não perdemos o primeiro protótipo do surdo, criado por Bide, pois o mesmo nem sequer figurava em seu acervo. Não consta nos anais, nem há meios oficiais que possam nos indicar seu paradeiro. Sua pele de saco de cimento provavelmente se rasgou, o arame que a enlaçava, enferrujado, deve ter se rompido; a lata de manteiga, também corroída pela ação do tempo, se não encontrou outra utilidade doméstica, dorme em algum aterro em berço nada esplêndido, pois a história que a História, enquanto instituição, escolhe contar é a outra. Ainda bem que contra a falácia da história única, temos a voz ainda firme, pulsante e presente do Samba.
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