Já na primeira cena de O Agente Secreto, somos apresentados a Marcelo (Wagner Moura, Praia do Futuro), um homem misterioso que chega à Recife de 1977 dirigindo seu Volks (como era chamado o Fusca) amarelo — amarelo-gema-de-ovo-de-galinha-caipira, de tão viva que é a fotografia de Evgenia Alexandrova — em plena Ditadura Militar. Mais adiante, ele descobre estar jurado de morte — e isso em pleno Carnaval. Mas por quê?
A brincadeira do título desta crítica com Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, não é à toa. Tanto O Agente Secreto, novo longa de Kleber Mendonça Filho (Retratos Fantasmas), quanto o filme de Coutinho têm a ditadura como engrenagem e evidenciam o poder do cinema como forma de resistência, de construção de identidade e de registro histórico. Enquanto Cabra Marcado para Morrer se transformou em documentário sobre a interrupção de sua própria produção pela repressão militar, O Agente Secreto se apoia em registros, lendas urbanas, referências cinematográficas e culturais da época para evocar o Brasil dos anos 70, mostrando como memória e cinema se tornam aliados essenciais para compreender e sobreviver a tempos de opressão.
Para quem acompanha o cinema de Kleber Mendonça Filho, não é exagero afirmar que O Agente Secreto chega como o seu filme mais ambicioso até agora. Laureado no Festival de Cannes de 2025, onde conquistou os prêmios de Melhor Direção, Melhor Ator para Wagner Moura, além do Prêmio FIPRESCI da crítica internacional e o Prix des Cinémas d’Art et Essai, concedido pela Associação Francesa de Cinemas de Arte e Ensaio, O Agente Secreto é uma belíssima declaração de amor do diretor a Recife, sua cidade natal, a partir de uma recriação de época minuciosa que mistura memória, lendas urbanas e cultura popular. A cidade, mais do que cenário, torna-se protagonista: suas ruas, sons, blocos de carnaval, cinemas e edifícios históricos compõem um retrato vívido da cidade em 1977, refletindo tanto a vitalidade de sua população quanto as tensões políticas do período.
Desde seus primeiros curtas de terror até os seus trabalhos mais recentes, Kleber Mendonça Filho demonstra interesse em explorar tanto o medo quanto a intimidade dos espaços urbanos. No curta Vinil Verde (2001), por exemplo, ele transforma uma casa comum em território de suspense, mostrando como o ambiente doméstico pode ser atravessado pelo medo. Em Bacurau (2019), a tensão se dá na pequena cidade ameaçada, onde o isolamento e a vigilância constante criam uma sensação de perigo iminente. Em Aquarius (2016), o medo surge da possibilidade de perder seu próprio espaço: o apartamento de Clara (Sônia Braga) se torna palco de resistência e preservação da memória. Já em O Som ao Redor (2012), o suspense nasce da observação minuciosa das rotinas, do som de portas, passos, latidos e alarmes, mostrando como a intimidade de um bairro pode ser atravessada por tensão constante. Dessa forma, O Agente Secreto funciona como uma piscadela cinéfila ao fã de sua filmografia, conectando sua trajetória à obra atual.

Na trama, o Marcelo de Wagner Moura chega a Recife em meio a um país tenso e instável. Logo percebemos que ele está envolvido em uma rede de conspirações, espionagem e interesses invisíveis, onde ninguém é totalmente confiável. A cidade se desenrola à sua volta como um labirinto vivo: ruas, blocos de carnaval, cinemas e cafés se tornam cenários de encontros, perigos e pequenas revelações. Quem é este inimigo invisível atrás de Marcelo? O que ele fez para ser perseguido? Quem são as pessoas do local onde ele se hospeda? Vamos acumulando perguntas ao compasso que a narrativa vai nos esclarecendo tudo pouco a pouco, sem pressa alguma. Esse suspense se constrói de maneira sutil, lembrando a abordagem de O Som ao Redor (2012), mas com um contexto histórico mais definido. A tensão não nasce de confrontos diretos, mas da sensação de que algo está prestes a acontecer: cada olhar, cada ruído, cada gesto cotidiano carrega potencial de ameaça. A narrativa, organizada em capítulos, nos convida a investigar e entender para onde as coisas estão caminhando, como se cada cena fosse uma peça de um quebra-cabeça que revela gradualmente o mistério em torno de Marcelo e dos demais personagens.
O coração de O Agente Secreto pulsa na relação entre cidade, história e memória. Recife não é apenas cenário: é território de festas, de violência e de lembranças que se sobrepõem. O filme evidencia os corpos suados do Carnaval (e também os corpos das vítimas desse mesmo carnaval violento), além da intimidade de quem transa escondido no cinema ou em praças (cuidado com a lenda da perna cabeluda!), celebrando a vida enquanto a morte está sempre presente. As notícias estampadas nos jornais — o saldo de mortos, os crimes, os tubarões — coexistem com essa energia pulsante, lembrando que gozo e violência, alegria e tragédia, caminham lado a lado no país. Isso fica evidente em certo momento no qual os refugiados — pessoas que, assim como Marcelo, tentam escapar de perseguições e manter suas identidades em sigilo — contam que estão ameaçados de morte. Eis aí que a personagem Dona Sebastiana, interpretada por Tânia Maria (Seu Cavalcanti) — que sempre rouba a cena quando aparece, — sugere: “vou mudar esse clima, vou botar uma música”, proporcionando um alívio cômico sem diluir a gravidade da situação. Essa alternância entre suspense e comédia é uma marca do cinema de Kleber, que consegue equilibrar perigo e descontração com espontaneidade.
Ao mesmo tempo, a ironia se torna um elemento central. Marcelo não é o herói clássico de um suspense policial, mas alguém encurralado por um sistema corrompido em todas suas instituições, da maior à menor — o poder que vigia, controla e ameaça está sempre presente, enquanto ele tenta sobreviver entre a festa, a paranoia e a tentativa de readaptação. Para um homem, ele é “um frouxo”; para ele mesmo, é “mais comunista que capitalista”; para nós, espectadores, é apenas um homem comum, pai de um garoto, tentando sair do país livremente sem compreender por que está sendo perseguido. O título, O Agente Secreto, reforça esse jogo: ele não é de fato um espião, e o filme brinca com essa expectativa subvertendo clichês de um thriller de espionagem norte-americano. Marcelo não irá se tornar um Marighella das ruas (herói da resistência que virou filme que o próprio Wagner Moura dirigiu), tampouco adotará a firmeza e a coragem da Eunice Paiva de Fernanda Torres em Ainda Estou Aqui fazendo justiça com a própria inteligência a fim de expor a crueldade de um Estado opressor; ele apenas tentará sobreviver.

Por falar em Ainda Estou Aqui, a comparação entre ambos é inevitável, sobretudo porque O Agente Secreto foi eleito pela Academia Brasileira de Cinema para representar o Brasil na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar em 2026, um ano depois da vitória consagradora do filme de Walter Salles (Terra Estrangeira) na mesma categoria. As duas produções partem de um ponto em comum: a recriação de época durante a Ditadura Militar e o mergulho na memória histórica do país — mas chegam a lugares distintos. Ainda Estou Aqui é mais direto e emocional, pensado para tocar públicos amplos e gerar empatia imediata. Enquanto O Agente Secreto é mais sinuoso e irônico, explorando o cenário da ditadura por outro viés, quebrando expectativas de gênero, ritmo e desenvolvimento, repleto de tensões sociais, detalhes urbanos e expressões culturais específicas, com a assinatura inconfundível de seu cineasta. Se o primeiro conquista pelo coração e pela emoção, o segundo seduz pelo olhar: e talvez aí resida sua maior força.
Essa atenção aos detalhes e à complexidade do passado se reflete em toda a narrativa de O Agente Secreto, que reforça a importância da pesquisa, do estudo e da memória como ferramentas fundamentais para compreender o presente. Cada capítulo, cada cena, cada pequeno elemento — das investigações aos registros históricos, das lendas urbanas aos recortes de jornais — funciona como um lembrete de que o conhecimento constrói resiliência, compreensão e, muitas vezes, sobrevivência. Kleber Mendonça Filho transforma essas camadas de história em uma defesa sutil, porém contundente, do investimento em educação, da preservação da memória e do papel da universidade como espaço de reflexão crítica e produção de saberes.
Em sua inusitada sequência final, com ecos de Retratos Fantasmas (2018), o diretor amarra linhas temporais, conferindo sentido a detalhes que antes pareciam soltos e mostrando como memória, pesquisa e conhecimento atravessam gerações. É justamente essa capacidade de unir sensibilidade e atenção histórica que torna O Agente Secreto tão poderoso: um retrato do Brasil que éramos, que somos e que precisamos compreender, lembrando que só pelo entendimento do passado, pelo cuidado com a memória e pelo investimento em estudo e reflexão podemos resistir, imaginar e transformar. Kleber Mendonça Filho não se limita a filmar uma época ou uma cidade; ele nos desafia a encarar nossa própria história, garantindo que ela não se perca e, assim, continue a inspirar ações, questionamentos e possibilidades de um futuro no qual os próximos carnavais sejam marcados não pela contagem de corpos, e sim pela contagem de beijos dados na boca.
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